sexta-feira, 18 de maio de 2007

Um Cheiro no Ar

Estava sentada à mesa da sala de aula. Envolvida com tantas provas e trabalhos, esqueci do horário. Já passava do meio-dia, com certeza, mas não conseguia levantar daquela cadeira. O que me prendia ali era muito mais do que a minha profissão, me arrastando para aquelas correções intermináveis. Havia no ar um cheiro que recendia a antigamente. As janelas semi-abertas deixavam ver, naquele pátio vazio de alunos, uma árvore lá no fundo. Fechei meus olhos. A respiração foi se esvaindo lentamente. A árvore estava lá, mas diferente. Tinha mais folhas. Seriam meus olhos? Havia agora algumas crianças brincando de roda em torno dela. Engraçado. Usavam saias as meninas e os guris calças curtas. Devia ser uma festa, uma atividade especial. Talvez. O barulho do outro turno de aula recomeçou. Tocaram uma sineta. Sineta? Vai ver a campainha estragou e eu nem fiquei sabendo. Também pudera, com tanto trabalho! Onde estava com a cabeça quando resolvi ser professora de Português? Por que cargas d’água não escolhi ser das Artes? Ou da Geografia? Nada contra os meus colegas, por quem tenho o maior respeito, mas... O raio do português nos deixa estressados. Todo mundo “anota” os erros dos alunos. Mas quem tem a responsabilidade de fazer aquelas cabecinhas entenderem que casa e asa se escrevem com S é a gente. Agente. É assim que a maioria dos alunos escreve. Junto. E por quê? Por que é que tem tantos porquês, professora? É por isso que sou professora de português. Pra ensinar. O problema é que gosto. E quando a gente gosta de uma coisa, nem o diabo pra fazer a gente desistir. Se os alunos me vissem falar assim! Credo! As crianças foram entrando na sala de aula. Eu tinha, de fato, aula depois, de tarde. Mas aqueles não eram meus alunos. Houve algum engano? perguntei. Ao que todos responderam, em coro: Boa tarde, professora! Quanta educação! É. Não são os meus alunos, aqueles da oitava série B, que quando eu entro nem me enxergam. Quando eu ia perguntar se houve algum engano, uma menina, linda e sardenta, de cabelos vermelhos, se aproximou e disse que era a vez dela fazer a oração do dia. Eu engasguei e emudeci. Percebi que era a mim que eles realmente viam como a sua professora. Foi quando a menininha, no alto de seus, creio eu, doze anos, terminou a reza e sentou. E todos estavam sentados. Sentados e mudos. Ficamos todos neste estado de petrificação durante alguns minutos. Não demorou muito para que um garoto fizesse a clássica pergunta: qual é o ponto de hoje, professora? Ao que fiquei vermelha. Ponto? Que ponto? Eu estava trabalhando com crase. Olhei para baixo e percebi que o assoalho brilhava, e o piso de madeira parecia novo, como se a escola tivesse acabado de ser reformada. Mas a última reforma foi há tanto tempo... Não. O piso nem era de madeira mais. Era vulcapiso. Borracha! Devia estar ficando louca. Aquelas crianças, aquele lugar. Tudo estranho. E eu não era estranha para elas. Minhas pernas começaram a tremer e minha cabeça a girar. Tive uma vertigem violenta. Uma mão carinhosa me acariciou os cabelos. Professora! Professora! A senhora tá bem? Levantei a cabeça e olhei para a árvore. Estava lá. Imóvel. Não havia mais crianças brincando ao redor dela. O vozerio do turno da tarde zunia agora nos meus ouvidos. Esfreguei os olhos, coloquei os óculos, caídos em cima da mesa. Tive que gritar para conseguir silêncio. A tarde estava muito quente e os alunos infernais. Crase! Vamos continuar nos exercícios de crase! Escrevi três exercícios de crase no quadro-verde e sentei. As pilhas de trabalhos permaneciam na minha frente. E no ar havia um cheiro de hoje, de agora, que eu não consigo explicar.

Um comentário:

Unknown disse...

Sora...adorei o texto!!!
=D
Muito bom mesmo. Isso aconteceu de verdade?
Você já teve um delirio ou um sonho em sala de aula??
bjãooo
ate semana q vem